Quadrinhos na Sarjeta é o blog do meu amigo Alexandre Linck. Ele escreveu um texto sobre a narrativa Hulk: The End, escrita por Perter David e desenhada por Dale Keown. Li a visão proposta por Linck e gostei e pedi sua permissão para reproduzi-la aqui no Radiação Gama. Por isso com autorização do autor segue abaixo no fim todos somos Hulk.
No fim todos somos Hulk
Por Alexandre Linck
Hulk sempre foi um dos meus super-heróis preferidos. Como muitos, o
conheci pela série televisiva e seus longas-metragens pra tv. No
entanto, apesar de que com o Batman migrei naturalmente do cinema para
as HQs, com o Hulk não aconteceu a mesma coisa. O principal motivo, hoje
vejo, é que mesmo quando criança eu gostava daquela tensão que
antecipava as transformações do Hulk. Agradava-me mais o aspecto
psicológico do que o porradeiro. Claro que ver o Hulk destroçando tudo e
todos é legal, mas isso só depois da identificação ocorrer, só depois
de vermos um sujeito comum sendo levado ao limite de sua raiva,
explodindo apesar de tanto resistir. Ou seja, ver um gibi onde o Hulk
começa quebrando tudo tá longe de ser o Hulk que aprendi a gostar e,
convenhamos, muitas das HQs do Golias Esmeralda são só amontoados de
músculos e pilhas de escombros. Por isso gosto tanto de Hulk – O Último
Titã.
Publicado em 2002 nos EUA, a estória mostra um mundo pós-apocalíptico,
onde quase tudo na Terra morreu, restando escombros, baratas mutantes e
um velho Bruce Banner. Ocorreu o holocausto nuclear, todos tombaram,
ficaram fracos, menos os maiores sobreviventes da Terra, as baratas e o
Hulk, fortalecidos pela radiação.
É uma vida de penúria onde Bruce Banner andarilha sem objetivo algum na
companhia de um vídeo-robô para registrar seus últimos momentos.
Eventualmente devorado pelas baratas, Banner se transforma em Hulk,
lutando, fracassando e se regenerando. Banner mesmo quando tenta se
matar, se atirando de um penhasco, ao chegar no solo vira Hulk. Os
diálogos de Peter David, veterano das HQs do Hulk, são primorosos. Toda
dualidade está ali manifesta de forma rica, Banner é fisicamente fraco,
mas forte o suficiente pra saber que sua vida chegou ao fim, já Hulk é
irredutivelmente egoísta, morte para ele é fraqueza e o monstro só sabe
fazer isso, resistir a tudo.
O passado de Banner o assombra, os fantasmas do General Ross, Betty Ross
e Rick Jones, ou dos vilões o Líder e o Abominável surgem silenciosos.
Da mesma forma aparece o passado do próprio Hulk, ora irracional, ora o
malicioso Hulk Cinza, ora o Hulk inteligente e autocontrolado. Há um tom
de despedida da própria trajetória do roteirista com o personagem, mas
também há uma tentativa de refletir um mundo possível pós-11 de
setembro, isso num momento em que tudo ainda era muito recente para os
norte-americanos.
Por isso o tom político da HQ. Depois dos ataques nucleares por
terroristas e a retaliação das nações na mesma moeda, assistimos o
extermínio humano. Durante a guerra, Hulk foge depois de ver uma criança
subnutrida abraçada a um cachorrinho no meio dos escombros. O que o
Hulk quer não é salvar o dia, ele quer resistir, inclusive às emoções
que o fazem fraquejar. Hulk quer resistir, acima de tudo, à própria
condição de vulnerabilidade e nocividade que os humanos representam. Por
isso ficamos sabendo que em planetas alienígenas, inclusive de espécies
rivais, houve festas para celebrar o fim dos humanos, uma espécie que
não deixará saudades, nos diz um robô alienígena.
Da política então caímos na filosofia (o que é o humano?), na
psicanálise (o homem dividido) e, principalmente, na mitologia (grega e
judaico-cristã). Na grega de forma mais assumida, Hulk é o Prometeu
moderno, que mostrou aos homens o poder do fogo moderno: o conhecimento
da energia nuclear. Assim como Prometeu foi condenado pelos deuses a ter
por abutres suas entranhas arrancadas e carne dilacerada em profunda
agonia para depois regenerar-se e sofrer o mesmo processo, Hulk pena
repetidamente com as baratas mutantes. Já a humanidade sofre sua punição
por ousar contra os deuses, a caixa de Pandora é aberta, o conhecimento
da energia nuclear resulta somente na aniquilação do ser humano.
A outra referência mitológica judaico-cristã, mais discreta, é quando
Banner sonha com uma Eva no paraíso para então acordar no pesadelo que é
sua vida. O mundo pós-apocalíptico é de certa forma o mundo do Adão
arrependido, do Adão que experimentou do fruto e que levou não só à
ruptura dos laços com o Pai, como tornou-se indigno de uma Eva, outrora
um presente para aplacar sua solidão.
No fim, quando Bruce Banner tem uma
parada cardíaca e convida o Golias Esmeralda a morrer junto com ele,
Hulk não aceita. Então a solidão toma sua real dimensão. Pois apesar do
eterno conflito, Banner e Hulk ainda eram companheiros, ainda eram a
garantia de um contato humano. É o fim de Bruce Banner, Hulk está só,
imensamente só e ainda resiste – em nome do que? Numa passagem, o robô
alienígena diz que os humanos tendem a balbuciar e pede que Banner fale
claramente. Penso que Hulk é esse balbucio em todos nós, essa força
guardada, que escapa como um rosnado involuntário e às vezes explode.
Hulk é o balbucio que resiste mesmo quando queremos calar a boca. Hulk é
o que escapa, se revelando em nós, mesmo quando o que mais queríamos é
que aquilo morresse. Contudo, isso resiste.
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Hulk – O Último Titã é desenhado por Dale Keown, quem talvez não seja a
melhor escolha pra densidade que o roteiro exige. No Brasil a estória
saiu em Marvel Apresenta 6, em 2003 pela editora Panini, junto com uma
outra estória chamada Hulk Esmaga escrita por Garth Ennis e desenhada
por John McCrea. É uma edição simples, mas vale a pena procurar. Nos EUA
existe um encadernado que traz juntamente ao O Último Titã outra
estória do Hulk no futuro chamada Futuro Imperfeito, do mesmo
roteirista, mas com os desenhos de George Pérez. Outra boa narrativa que
pretendo comentar aqui num futuro próximo.
Para ler o Texto Original é só clicar aqui.
Ótimo texto, todos temos um pouco do Hulk!
ResponderExcluirObrigado Guy.
ResponderExcluirO Linck tem várias particularidades.
ResponderExcluirEscreve bem, tem boas ideias, uma boa cultura de quadrinhos e também cultura geral, o que lhe dá uma facilidade enorme em analisar pormenores que nós nem reparamos.
Mais um bom texto do Linck, e eu gostava de ter um pouco mais de Hulk para esmagar algumas moscas que eu conheço!
:D
Abraço
Poxa, Nuno. Tô me achando pacas depois dessa. haha. Grato!
ExcluirAté hoje só não entendi um detalhe, neste estoria, o hulk morreu ou não ?
ResponderExcluirA história termina com o Hulk vivo Leme.
ExcluirAdorei o texto,tenho essa edição aqui com muito carinho, inclusive Futuro Imperfeito também. O Linck é o Hulk egoísta com certeza que se recusou a morrer quando o Bruce Banner dentro dele (no bom sentido) sofreu o ataque cardíaco e o convidou para ir em paz com ele. Agora aqui está ele, nessa web desolada e cheia de baratas, na sarjeta da cultura pop na rede, no que sobrou, nos brindando com ótimos textos, todas as semanas. E nós, nós somos esse robô que registra passo a passo sua rotina. Show!
ResponderExcluirEita, depois dessa vou me candidatar a vereador e presidente do sindicato de blogueiros de quadrinhos! Valeu, Victor!
ExcluirEssa eu li muito boa essa hq!!
ResponderExcluirUma das melhores hqs do Hulk. Dale Keown é um ótimo ilustrador para Splash pages, mas ele consegue dar uma "cara Hulkiana" para sua arte,portanto não atrapalhou na hq.
ResponderExcluirE o enredo faz coro com a maioria dos leitores, que considera o Hulk o personagem "mais indestrutível" (se é que há coerência nessa expressão) do universo Marvel.